Ehunmilak – A crónica das minhas 100 milhas

Para a Julieta. Sem ela não teria sido possível viver esta aventura...


Estou a começar a escrever este texto no final das minhas férias, em agosto, 6 semanas depois da prova. Confesso que não me lembro claramente de tudo. As memórias da primeira noite não são muito claras, talvez devido ao cansaço. Há partes que não me lembro, de todo. As da segunda noite, curiosamente, são bem mais nítidas.

Nunca escrevi nenhum texto sobre nenhuma prova que tenha feito, nem sobre outra coisa qualquer. Não tem sido da minha natureza. No entanto desta vez senti essa necessidade, ou vontade, talvez também por ter ouvido esse comentário de alguns amigos a quem contei algumas aventuras desta prova: “tens que escrever isso, pá!”. E aqui está. Não sei se vou conseguir passar o sentimento para quem ler, mas na verdade é para mim que escrevo.

Ehunmilak – A prova

100 milhas… são cerca de 160 quilómetros e é a mais famosa das ultradistâncias no trail.

Ehunmilak (diz-se É-un-mi-ak, e significa 100 milhas, em basco) é um evento de trail running que decorre todos os anos em Beasain, no Pais Basco, desde 2010. A distância rainha – as 100 milhas – é considerada uma das provas mais exigentes da Europa. A prova parte da praça San Martín de Loinaz, no centro da vila, e percorre no sentido dos ponteiros do relógio grande parte da província Gipuzkoa. Atinge uma altitude de cerca de 1500 metros e tem como principais desafios as montanhas ícone da zona: Txindoki e Aizkorri. Atravessa inúmeras outras montanhas, vales de pasto, e vilas históricas.

É por todos reconhecida como uma prova diferente das outras, que não se deixou levar pelas grandes marcas e onde tudo parece autêntico. Por último, mas talvez o mais importante, as suas gentes. Os bascos são reconhecidos amantes do desporto, seja o ciclismo (basta ver as etapas da Vuelta, ou do Tour de France deste ano, na zona de Bilbau e San Sebastian) seja do atletismo e o apoio que dão aqui aos atletas é sem dúvida, só por si, um espetáculo. A prova tem início, habitualmente, pelas 18h de sexta-feira e os primeiros a cruzar a meta chegam cerca de 24 horas depois. O último atleta é esperado pelas 18h de Domingo, 48 horas depois.

A distância oficial é de 168 km, e o desnível positivo acumulado é de cerca de 11000 metros (para os leigos, é muito!). Isto significa que por cada quilometro percorrido, em média temos de subir (e voltar a descer) 65 metros. Tem 15 postos de abastecimento intermédios (distam de 9 a 14 km entre si), onde nos podemos alimentar e descansar, sendo que dois deles são considerados Bases de Vida – aqui temos possibilidade de dormir, tomar um duche, ter uma refeição mais completa, e ter acesso a um saco com material que previamente deixamos com a organização. Em dez destes pontos existe também controlo horário, uma vez que a prova tem tempo limite. O último destes pontos de controlo é a meta, com o tempo máximo de 48 horas.

O verdadeiro início da aventura

Verão 2022… O bichinho já andava a mexer há uns tempos, e a prova alvo era as 100 milhas do TPG, no Gerês. Queria ter o meu nome inscrito no Mural dos Finalistas, em Montalegre. Ia puxando o assunto com os amigos da Matilha, mas não estava a ter sucesso nas minhas tentativas de persuasão e, sem companhia, o bichinho não passava disso, uma ideia que vivia tranquila na minha cabeça. Até em casa já tinha falado nesse assunto, mas a reação foi a óbvia… só podia estar maluco…

Mas no final do verão de 2022 as coisas mudaram… em conversa com o João, ele disse que também tinha o mesmo bichinho e até já tinha uma prova em mente e um real interesse em fazê-la em 2023. E qual era a prova?! O Ehunmilak! A temida… a ultra difícil, com 11000 metros de desnível positivo… aquela em que muitos desistem… aquela que é diferente de todas as outras pelas suas gentes, os amantes de desporto que são os Bascos!

… E a resposta só podia ser uma e não demorou mais do que uns breves segundos… BORA LÁ!!!

No mesmo espírito também já estava o Rui e, para a distância mais curta (88k), o Hélder, o José, o Joaquim, o Eurico e o Sérgio!
E pronto, dia 9 de novembro, dia de abertura de inscrições, lá estávamos todos à hora marcada com o dedo no botão para nos inscrevermos. Resultado? Eu, o João e o Rui nas 100 milhas, o Joaquim e o Helder diretos para os 88k, e o Camelo e o Mesquita na lista de espera dos 88k. Grande entusiasmo de toda a gente, mas, como já se sabe, há sempre desistências, imprevistos e planos cruzados… e a lista final ficou reduzida a 3 aventureiros: eu (pois claro!) e o João nas 100 milhas, e o Joaquim nos 88k.
Seguiram-se meses de treinos intensos, onde tive a ajuda e planeamento do João Oliveira e do Pedro Carmona. Foram treinos bastante exigentes, para o que estava habituado, que me levaram muitas vezes ao limite. Houve não só a vertente de corrida, mas também muitos treinos de bicicleta e reforço muscular. A vontade era muita e raramente falhei um treino. Houve também a componente de nutrição, onde aproveitando uma parceria no emprego, tive acompanhamento de uma nutricionista – Patricia Fernandes – que me deu uma ajuda muito grande, não só a perder peso e comer melhor no dia a dia, mas também a alimentar-me melhor antes e durante as provas.

Durante todos estes meses – de novembro a julho – apesar de o Ehunmilak ser o meu grande objetivo, fui fazendo outras provas, o que ajudou a desviar o foco e a que tivesse sempre vontade de treinar. Fiz os 35km do Pisão Extreme em novembro, o Cross Laminha em janeiro (esta não pode faltar), os 43km do Louzantrail em março e os 100 km do Trans Peneda-Gerês no final de abril.

Os meses foram passando, e rapidamente chegamos às semanas anteriores à prova. Era hora de começar a preparar tudo para que não houvesse surpresas de última hora. Havia que verificar se tinha todo o material necessário, comprar as barras, géis, isotónico e afins.

A ansiedade aumenta e as horas vagas são passadas a preparar a prova. Preparar a lista de material que vou levar, preparar o esquema de nutrição que vou utilizar, preparar as malas e garantir que todo o equipamento que quero levar está lavado e em boas condições.

Tudo pronto, era hora de partir. A Julieta deixa-me no aeroporto, onde o João também tinha acabado de chegar, e partimos rumo a Bilbau.

Chegada a Bilbau e preparativos para a prova

Chegámos ao aeroporto de Bilbau perto da meia-noite e meia e tínhamos à nossa espera o Joaquim – que tinha ido de carro e já estava pela zona – para nos levar para Beasain. Após a viagem de carro, que demorou cerca de uma hora, dirigimo-nos ao pequeno hotel que tínhamos reservado e rapidamente fizemos check-in para nos prepararmos para a última noite de descanso antes da prova. Era um hotel modesto mas confortável, por cima de uma bomba de combustível, na periferia, mas a uma caminhada de 10 minutos de distância do centro. Eram já duas da manhã quando fomos dormir. Devido à ansiedade que sinto nestas ocasiões, na noite antes das provas tenho sempre dificuldade tanto em adormecer como em ter uma noite tranquila, mas desta vez, talvez por a prova só começar no final do dia seguinte, acabei por conseguir dormir bem.

De manhã acordámos e fomos até ao centro da vila (10 minutos a pé) para tomar o pequeno-almoço e levantar os dorsais. Era necessário mostrar logo o material obrigatório no processo de levantamento dos dorsais, que decorreu rapidamente e sem percalços. Na mochila, para verificação, estava: o apito, dois frontais e 2 baterias extra, flasks para 1L de água, reserva alimentar (barras e géis), casaco impermeável com capuz, calças, manta térmica, boné, banda elástica adesiva, e telemóvel.

Feitas as verificações e levantados os dorsais, fomos de novo ao hotel para deixar a tralha e fomos almoçar na famosa pasta party! Chegámos à pitoresca casa onde era servido o almoço e realmente era como o nome indicava: uma verdadeira festa da massa, com massas (e arroz) em grande quantidade e para todos os gostos. Comemos até ficarmos saciados e com o “tanque cheio” para a prova, mas sem exageros e sem grandes molhos para não ter surpresas mais tarde. Depois deste manjar, era hora de voltar ao hotel para os últimos preparativos e para as últimas horas de descanso. Tínhamos cerca de 3 – 4 horas para tratar de tudo. Foi já com algum nervoso miudinho que preparámos tudo o que havia para preparar. A roupa para vestir, incluindo mochila e bastões e os dois sacos para as bases de vida. Nestes sacos podemos colocar (quase) tudo o que quisermos, desde que caiba, e estarão à nossa espera nas duas bases de vida, aos quilómetros 77 e 130. Ora então:

Para levar vestido no arranque da prova:

  • T-shirt Matilha – a amarelinha não pode falhar!
  • Calções (Lurbel Tifon Pro) – dos poucos que não me provocam assaduras nas coxas…
  • Meias (Socksby) – não há que inventar
  • Sapatilhas (Hoka Speedgoat 5) – idem…
  • Cinto porta dorsal e bastões (Aonijie) – bom e barato, ou se calhar só barato
  • Bastões (Ferrino Jet) – não são os ultraleves que por aí se veem, mas gosto muito
  • Mochila (Aonijie 12L), lá dentro:
    • 2 flask 500ml (Decathlon) – uma com água outra com água e tailwind
    • Impermeável 10000mm (Higher State) – bom e barato
    • Camisola térmica manga comprida (Decathlon) – eficaz e barata
    • Calças (Higher State)
    • Vaselina
    • Protetor Solar
    • Alimentação:
      • 7 géis (Powerbar hydro)
      • 6 doses eletrólitos (tailwind)
      • 7 barras (Decathlon e Saltbar Gold Nutrition)
    • 1 pacote de lenços (sim, é mesmo para isso)
    • 1 buff – de uma qualquer oferta
    • Boné (Buff) – da moda e foi barato
    • Luvas (Decathlon)
    • 1 frontal Petzl Actik Core 450 + 1 bateria extra – o meu favorito e o que uso no dia a dia, barato e eficaz
    • 1 frontal emprestado + 1 bateria extra – era obrigatório levar, mas acabei por não usar
    • Bolsa de emergência:
      • Manta térmica
      • Pensos
      • Gaze
      • Tesoura
      • Unidose soro fisiológico
    • Banda elástica adesiva
  • E chega!!

Para as bases de vida, dois sacos com:

  • T-shirt Matilha
  • Calções (não são os da Lurbel, mas se tudo correr bem não os uso)
  • Camisola térmica manga comprida
  • Meias
  • Sapatilhas
  • Buff
  • Lenços
  • Creme gordo
  • Isotónico, Géis, Barras e Rebuild da Tailwind
  • Cabo para carregar o Iphone
  • Cabo para carregar o relógio
  • Powerbank
  • Vaselina
  • Protetor solar
  • Toalha

Como já vinha tudo em sacos separados de casa, apesar da azafama, foi fácil preparar tudo e confirmar uma e outra vez que não faltava nada. Sacos prontos, roupa preparada, era altura de descansar mais um pouco até perto da hora de partida.

Entretanto, no meio das arrumações tínhamos recebido um SMS da organização a informar que a prova ia começar duas horas mais tarde, devido à previsão de chuva forte e trovoada. Em vez de começar às 18h, iria começar às 20h. OK… mais duas horas para descansar… tranquilo. Eu e o João deitámo-nos na cama, a ver o Tour de France já só com um olho aberto, à espera do toque do despertador para sair do hotel rumo à zona de partida. Ainda tínhamos de entregar os sacos para a base de vida, passar mais um controlo e esperar os últimos minutos até às 20h para a grande partida.

Partida

Quando chegámos à zona da partida, começámos a sentir a energia da prova, com muita gente na zona da praça. Muitos atletas, acompanhantes, pessoas da organização, mas acima de tudo, muitos populares a concentrarem-se na zona da partida. Sentámo-nos uns minutos nuns degraus da praça e automaticamente entrámos cada um no seu mundo. Foram minutos de concentração, de foco, mas também de olhar em redor e observar os outros… uns mais focados, outros na galhofa, alguns a fazer exercícios de aquecimento… havia um pouco de tudo.

Minutos mais tarde, já a cerca de 30 minutos do início, despedimo-nos do Joaquim (a prova dele só começava às 23h), avançamos para o interior da zona de controlo, mostramos mais uma vez algum do material obrigatório e já estava. Estávamos na zona de partida, não havia volta a dar… dali só em frente, às 20h, para começar as 100 milhas e para regressar quase dois dias completos mais tarde, completamente drenados e esgotados. Tinha sonhado (a dormir e acordado) com esses dois momentos dezenas de vezes, a partida, e a chegada. Mais a chegada, confesso, mas também a partida. Nos cerca de 20 minutos que falta, ultimam-se os preparativos… bastões presos, sapatilhas com o aperto perfeito, relógio com o GPS pronto, mochila bem ajustada… tudo pronto para partir rumo às 100 milhas. 15 minutos… a uns 5 metros de mim, num coreto, estão alguns elementos da organização que vão dando as últimas indicações, e uns artistas vão tocando instrumentos típicos do País Basco que, admito, não prestei muita atenção… 10 minutos, mais um abraço ao João, desejar boa sorte, olhar para os atletas ali à nossa volta, concentrados na praça… 7 minutos, começam os nervos a aparecer, já não consigo estar quieto, BORA! ESTÁ NA HORA! Não… ainda não está… faltam 5 minutos… começa a música da partida… um clichê das provas de trail, o clássico dos clássicos, o inevitável Conquest of Paradise do Vangelis. E como se de um interruptor se tratasse, fico imediatamente arrepiado com a música. Saco do telefone e faço uns vídeos, este momento tem de ficar registado, envio rapidamente para o WhatsApp da Família e dos amigos da Matilha (estes seriam os meus companheiros à distância) … que momentos aqueles…!! 30 segundos… tanta gente, caraças… os acessos à praça estão cheios, a rua por onde vai passar a prova está à pinha, nos prédios em volta as pessoas estão a ver à janela… 10… é agora… GPS está pronto, BORA JOÃO!!! 7… está quase!! 3, 2, 1… começou…

O relógio não parou, mas a minha mente sim. Era agora… estava a começar… tantos meses de treino, treinos difíceis… aquelas terças de manhã na Expo a fazer treinos de series longas e rápidas, aquelas tardes em Monsanto a fazer 4 cozidos, 5 cozidos, 6 cães… sobe rápido, sobe lento, desce rápido, desce lento. Manhãs (e tardes) de sábados e domingos em treinos longos em Sintra… tudo aquilo era principalmente para este momento, para chegar a esta prova e ter capacidade de a terminar… a temida… o Ehunmilak. São 20h, ouvem-se os sinos da igreja e vamos avançando em passo lento até cruzar a linha de partida e dar início à aventura… estou a chorar de emoção… não consigo conter uma ou outra lágrima que me molhava o rosto… passamos rapidamente pelo Joaquim que estava a filmar uns metros depois da linha de partida e acenamos. Seguimos pelas ruas cheias de Beasain, com centenas (milhares?) de pessoas a aplaudir e a gritar palavras de incentivo – “Oupa!”, “Animo!” e “Suerte!” são as palavras mais ouvidas. Será que sabiam o que estava ali a começar? Provavelmente a grande maioria não, mas isso também não importava nada. Dezenas e dezenas de miúdos com a mão esticada, tento não falhar nenhum, “dou 5” a todos os que consigo. Eles ficam contentes, e eu tento conter o choro.

Cerca de 2km depois, o terreno plano e o emaranhado de casas dão lugar à primeira subida em alcatrão, já sem casas, mas ainda com bastante gente na estrada a aplaudir, até que deixamos o asfalto e entramos por um caminho e aqui já com pouca gente. Tinha começado, agora seria isto durante 40 horas, talvez 44, talvez 48. Eramos nós e o trilho, numa conversa de 2 dias. Atenção que isto não significa que não houvesse mais pessoas a aplaudir ao longo dos dois dias. Longe disso. Houve sempre muita gente pelo caminho, principalmente nas vilas e aldeias que atravessámos, mas também em zonas mais remotas. Mas, naturalmente, não era o mar de gente que estava na partida.

Primeira noite

Beasain – Mandubia / 10 km / 1050 d+ 600 d-

Vamos na cauda do pelotão neste arranque, mas vamos mantendo um ritmo constante nas subidas. A prova arrancou logo com uma grande subida até uma zona com antenas. Aqui começamos a ver alguns atletas em dificuldades, coisa que não esperava nestes quilómetros iniciais. O tempo, apesar de não estar muito quente, estava muito húmido e abafado, e quem não se dá bem nessas condições iria ter dificuldades. Também noto que o João está focado em manter um ritmo constante, mas lento durante toda a prova. Em algumas subidas chego a dar quase 100 metros de avanço, mas depois espero nas descidas. Apesar de gostar sempre de fazer a minha própria prova, ao meu ritmo, esta ia ser sem dúvida diferente. O objetivo era seguir com o João do início ao fim, para irmos fazendo companhia um ao outro. Tínhamos feito todo o treino em conjunto (apesar de na verdade termos treinado poucas vezes juntos), e havia uma grande componente psicológica em querer fazer a prova com ele, por tudo o que aconteceu nos meses até aqui chegarmos (o João sofreu uma lesão no final de março, no Marão, e esteve longas semanas sem treinar, chegando a pôr a hipótese de não vir ao Ehunmilak). Várias vezes ele disse… “segue, faz a tua prova”, mas obviamente ignorei… viemos juntos e vamos juntos até ao fim!

Depois desta subida inicial, com cerca de 5 km, temos um ligeiro sobe e desce, e depois cerca de 2 km a descer até ao primeiro abastecimento – uma pequena tenda num espaço aberto sem arvores, em Mandubia. Estão completados 10 km e cerca de 1000 metros de desnível positivo. Executamos disciplinadamente o ritual que teremos em todos os abastecimentos: garantir que bebemos todo o isotónico que trazíamos na flask; atestar a flask da água e a do isotónico; beber um copo de coca-cola ou outro sumo com gás caso não houvesse; comer fruta e hidratos (normalmente melão ou laranja e umas sandes de pão de forma com queijo e fiambre); comer meia dúzia de frutos secos salgados; enviar uma foto aos amigos e família no WhatsApp.

As sensações são boas, e seguimos para o segmento seguinte cheios de força.

Mandubia – Zumarraga / 10 km (total de 20) / 800 d+ 630 d-

Desta feita seriam mais 10 km com um perfil semelhante aos anteriores: uma grande subida e uma grande descida até ao abastecimento seguinte. Logo à saída do abastecimento entramos num bosque, onde serpenteamos sem grandes elevações até chegar à primeira grande subida da prova. Aqui começou a anoitecer e conseguíamos ver o carreiro de pequenos pontos de luz dos frontais a subir pela montanha íngreme. Apesar de íngreme, a subida não tem mais do que 1 km e passamos por ela sem grande dificuldade. Feita a subida era hora de descer, cerca de 6 km até ao abastecimento, na localidade de Zumarraga. Aqui chegamos com menos de 4 horas, e com alguma margem para o tempo de corte que era de 4h25m. Talvez por ser o primeiro tempo de corte, era aquele que achávamos mais agressivo – 4h25m para fazer 20 km com 1850 d+. Nada de mais num treino com estes valores em Sintra, mas metia respeito numa prova de 100 milhas. O João comentava comigo que íamos num excelente ritmo, e que tínhamos uma boa almofada para o tempo de corte, eu achava que não – que íamos muito lentos – mas talvez fosse mesmo aquele o ritmo das 100 milhas. Chegamos com a hidratação controlada, bem como a alimentação. Tudo como tinha planeado. Nesta base de vida vemos já bastante gente maltratada e ficamos um pouco surpreendidos… aparentemente o calor já tinha feito das suas e agora, olhando para os resultados, vejo que houve 11 atletas que não conseguiram chegar a este abastecimento. Aqui também encontramos uma atleta portuguesa, a Ana Bernardo, que acabou por terminar a prova duas horas antes de mim. Cumprido o ritual dos abastecimentos (abastecer os flasks com água, misturar o Tailwind numa delas, comer, beber, foto…), era pouco mais de meia-noite, estávamos há cerca de 15 minutos no abastecimento, e era hora de avançar para o próximo setor.

Zumarraga – Gorlako / 9 km (total de 29) / 750d+ 450 d-

Saímos de Zumarraga e aqui confesso que me lembro de pouco. Recordo-me de uma grande subida inicial, onde metemos conversa com alguns atletas com quem nos íamos cruzando – a bandeira portuguesa que temos nas camisolas da Matilha servia de quebra-gelo para as conversas. Fizemos uns bons quilómetros com uma senhora sueca que ia tentar terminar a prova pela terceira vez (acabou por não conseguir terminar). Chegámos ao abastecimento pelas 2:10 da manhã. Levámos pouco mais de duas horas a fazer este setor, e estivemos no abastecimento cerca de 15 minutos onde fizemos o procedimento habitual. Penso que terá sido neste segmento que soubemos que o Joaquim tinha desistido na prova dos 88 km, que tinha começado às 11 da noite. Logo nos primeiros quilómetros tinha desistido sem motivo aparente. Talvez apenas não lhe apetecesse continuar. Ficamos tristes pelo Joaquim…, mas temos de seguir.

Gorlako – Madarixa / 14 km (total de 43) / 570d+ 450 d-

Seguimos caminho para aquele que era o setor mais “corrivel” da prova. Eram 14 km sem grande desnível, onde daria para progredir rapidamente. Foi um setor sem grande história, ou então a minha memória foi-se nesta madrugada. Não tinha sono, eram cerca de 5 e meia da manhã quando chegámos ao abastecimento, o sol estava quase a raiar, e íamos tranquilos. Tanto eu como o João. Para já tínhamos feito uma típica prova de 43 km, com 3000 d+ em 9 horas e meia. A confiança estava em alta, e rapidamente reabastecemos e arrancámos para o próximo setor.

Final da primeira noite, e o arranque do novo dia

Madarixa – Azpeitia / 10 km (total de 53) / 630 d+ 1450 d-

Em Azpeitia havia o segundo controlo de tempo e tínhamos de chegar antes das 9:45 da manhã. Fizemos rapidamente as contas e tínhamos tempo mais do que suficiente para fazer estes 10 km sem pensar no relógio. Saímos do abastecimento já com o sol a raiar e como entrámos logo num troço em alcatrão experimentámos desligar os frontais. Era cedo ainda. Dava para ver a estrada, mas sem a luz as fitas não refletiam e rapidamente nos podíamos perder. Ao fim de alguns minutos largamos a estrada, agora sim já de dia, e entramos num bosque. A mente rejuvenesce e ganhamos outro animo. Não que estivéssemos desanimados, mas a luz do sol traz outro conforto que já tínhamos perdido há largas horas. Ao entrar nesse bosque, de arvores altas, somos confrontados com um som que começa como um pequeno zumbido, muito ao longe, mas que vai crescendo como se estivéssemos a começar a fazer parte dele. O pequeno zumbido torna-se um som quase ensurdecedor e comento com o João o que seria aquilo?! Vespas?! Abelhas?! Que insetos haveria ali, aos milhares, para fazer tamanha sinfonia? E nisto começamos a levar com aqueles insetos (não chegámos a saber ao certo o que era, mas penso que vespas) na cara, na cabeça, no peito e nas pernas. Estavam por todo o lado e batiam em nós como se estivessem cegos. Chegamos a ter algum medo, até porque estivemos naquela situação durante uns 15 ou 20 minutos.

Nesta parte tivemos o primeiro golpe da prova… se até ali tudo estava a correr bem… deixou de estar. O João andava há uns minutos a dizer que o último gel que tomou não lhe tinha caído bem, e acabou por vomitá-lo. Imediatamente me veio ao pensamento… “isto vai acabar mal e não vamos conseguir chegar os dois ao fim…” Neste tipo de provas os problemas gástricos são muito comuns e, por norma, incapacitantes e um dos grandes motivos de desistências… Podia até não ser nada, é certo, mas algo me fez pensar o pior. Tento afastar o pensamento.

Passada essa parte começamos uma subida para aquela que seria a primeira grande paisagem da prova. O bosque deu lugar a erva rasteira e em poucos minutos somos premiados com uma vista fantástica para o horizonte, com Azpeitia lá no fundo. O Sol já tinha nascido e o cenário estava fabuloso. Aproveitámos para tirar umas fotos, antes de dar início à descida de cerca de 3 km e quase 700 metros de desnível até à vila.

Na descida apanhamos muita gente a subir em treino, mas também muitas pessoas em passeio, novos e velhos, coisa que nos surpreendeu. A comparação era inevitável… em Lisboa acordamos cedo ao fim de semana para ir para a praia e para o shopping, os Bascos faziam o mesmo, mas para subir à montanha!

Chegámos ao abastecimento pelas 8 da manhã, bem antes do tempo de corte, mas o João continuava a não conseguir comer e já tinha vomitado pelo menos mais uma vez. Já me tinha dito novamente para seguir mais rápido, mas ignorei. Íamos juntos! A moral já não estava em alta, e o clima era de preocupação… sem comer não há energia, e sem energia não se correm 100 milhas… Ainda assim não tínhamos quebrado muito o ritmo, o que até eram boas notícias. Agora era hora de reabastecer, tirar a foto da praxe e, cerca de 20 minutos depois, seguir para mais um segmento.

Azpeitia – Zelatum / 13 km (total de 66) / 1020 d+ 290 d-

Este é um segmento essencialmente a subir, e onde se começa a fazer sentir o calor. Estávamos a meio da manhã e o sol já estava forte, o que ameaçava fazer deste dia um dia difícil. Saímos do abastecimento e rapidamente começamos a subir por terras de cultivo, e sem nenhuma sombra. O João, apesar de tudo, até ia bem e continuava com bom ritmo, mas ainda não conseguia comer. Passamos por uma estrada onde estavam algumas pessoas a dar água aos atletas e paramos uns minutos para descansar à sombra. Eram cerca de 10 e meia e o sol estava bastante quente. Seguimos e “apanhamos boleia” de um senhor espanhol que já tinha feito a prova várias vezes e com quem estivemos algum tempo à conversa. Transmitia um sentimento de enorme calma e confiança de que o objetivo ia ser cumprido (acabou por não conseguir terminar). Continuámos debaixo do sol forte, agora já com a progressão um pouco mais lenta. Sinto o João muito calado…, mas o abastecimento era já ali e lá podíamos descansar mais um pouco e voltar a tentar comer.

Demoramos quase 3 horas a fazer este segmento. Chegados ao abastecimento, estamos lá os 15 minutos do costume, reabastecemos de água, comemos, mando a foto para a família e amigos e seguimos.

Zelatum – Tolosa / 11 km (total de 77) / 350 d+ 1180 d-

Sinto que a partir daqui a moral do João começa a cair a pique. São 11 e meia da manhã e o sol está cada vez mais forte. Tínhamos uma pequena subida logo à saída, depois cerca de 4 km num ligeiro sobe e desce, e depois uma grande descida para Tolosa, de cerca de 7 km com quase 1000 metros de desnível negativo. Aqui teríamos a primeira base de vida. Para mim, a aproximação a estes pontos chave é sempre um momento de alguma ansiedade, e tende a ser um momento que custa mais a passar. A cabeça vai a pensar que é já ali… que está quase…, mas não é verdade… são 11 km como outros quaisquer 11 km… seriam sempre mais de duas horas.

Na base de vida tínhamos de novo uma barreira horária. É preciso chegar lá antes das 20 horas de prova, ou seja, às 4 da tarde. Faço rapidamente as contas de cabeça: Eram 11 e meia da manhã… a correr mal demoraríamos 2 horas e meia… chegávamos à base de vida às 2 da tarde, e tínhamos mais do que tempo para comer e beber bem, descansar, tomar banho se fosse necessário…

Mas não… as contas não bateram certo… nem foram duas horas, nem era já ali… nem tivemos tempo para nada…

Este foi um setor de sofrimento para o João. Continuava sem comer e no trail não há milagres. O pequeno sobe e desce que tínhamos no início revelou-se bem mais demorado e difícil de progredir. As subidas eram lentas e as descidas também. O calor era enorme. Estava tudo contra. No início da descida encontramos um atleta em grandes dificuldades que nos pediu qualquer coisa para comer. Dispensámos uns géis e umas barras e seguimos caminho. Continuamos a descida, a passo ultra-lento, até que quase a chegar ao abastecimento este atleta passa por nós. Psicologicamente senti que era um golpe e sem pensar disse ao João… “até o morto nos passou!”. Imediatamente me arrependi. Não era de certeza aquilo que o João queria ouvir… aquilo não o animava. Mas lá continuámos. Passados uns metros tivemos um momento que ficará para sempre na memória: o Joaquim, no meio do caminho, com uma cerveja bem fresquinha para cada um de nós! Que alegria vê-lo ali! Por ser uma surpresa ver ali o nosso amigo, mas também porque significava que a base de vida era já ali a 500 metros! Fazemos um brinde, mas o sabor foi agridoce: acabaram de chegar os vassouras… éramos os últimos… e apesar de estarmos ainda dentro do tempo, sermos os últimos era algo que não estava à espera e me deixou inseguro e bastante desconfortável. Automaticamente retomamos o passo e rapidamente chegamos à base de vida.

Primeira base de vida – Tolosa – 77 km

Eram cerca de 2 e meia da tarde quando entrámos no abastecimento. Tínhamos uma hora e meia até ao tempo de corte, muito tempo. Aqui a prioridade era comer e beber bem. Ia comer uma refeição “normal”, com sopa e massa com carne. Para beber tinha uma dose de Rebuild da Tailwind, e bebi também água e coca cola. Comi várias “tostas mistas” com pão de forma e queijo e fiambre prensadas. No entanto a grande preocupação era o João… há horas que não comia nada de jeito, já tinha vomitado uma serie de vezes, e sinceramente não acreditava que ele fosse continuar. Vi-o a trincar qualquer coisa, e depois foi tomar um duche. Estive algum tempo só sentado a descansar e quando o João voltou do banho trazia más notícias… Quando na sexta-feira durante a tarde fomos informados de que a prova tinha sido atrasada duas horas, ignorámos completamente a frase seguinte da SMS que dizia: “consulte aqui os novos tempos de corte”! Automaticamente assumimos que tudo tinha andado 2 horas para a frente, desde a partida (das 18h para as 20h de sexta-feira), até à chegada (das 18h para as 20h de domingo), passando pelos tempos de corte. Mas não… a hora do fecho da meta manteve-se às 18h (a prova passava a ter limite máximo de 46 horas e não 48) e os tempos de corte tinham sido todos ajustados numa décalage até chegar às duas horas na meta. O que é que isto queria dizer? Queria dizer que na verdade tínhamos de sair da base de vida até às 3:15 da tarde, e não às 4!! esta bomba caiu às 3 horas!! As pessoas da organização andavam à nossa volta a perguntar: “Então? Não saem? Faltam 15 minutos!”. “15 minutos?! Como é que é possível!?!?!” perguntava eu… “não era às 4 horas?!?!”. Para piorar a situação, o João diz que não vai continuar… Não aceito! Tento convencê-lo de que ainda dava, ainda era possível, era comer e seguir! Íamos sair em cima do corte, mas ainda dava! Ele dizia que não… tinha vomitado tudo no banho e não ia continuar… à nossa volta havia vários atletas a desistir, porque apesar de ainda estarmos dentro do tempo, era impossível cumprir a próxima barreira, e mais valia ficar já ali! A sair dali no limite, seriam 19 km com cerca de 1000 d+ em 3h50m… Era o que tínhamos até ao próximo abastecimento… ao ritmo que íamos (mais de 2 horas para fazer 10 km) não ia dar, mas se puxássemos um pouco dava… este perfil num treino em Sintra eram 3 horas…, mas não estávamos em Sintra… e só um milagre fazia com que o João conseguisse…

Estava com um dilema profundo na minha mente… estava stressado, nervoso e ansioso… as mãos já tremiam: sigo sozinho e abandono o João?! Não… não podia ser… ainda dava… não o podia deixar ali… tínhamos de tentar mais um pouco… Ou espero por ele e corro o risco de não chegarmos ao próximo tempo de corte?! Também não podia ser… não podia correr o risco… eu estava bem… tinha vindo para Beasain para isto!? Tinha andado a treinar meses e meses a fio para isto? Para chegar aqui e não terminar a prova sabendo que tinha condições para o fazer?! Era assim que ia acabar!? Barrado num tempo de corte?! Nervos, muitos nervos…

5 minutos para fechar o abastecimento… visto-me meto a mochila às costas e saio do abastecimento (ali não ia ser barrado!) e começo a gritar para dentro… BORA JOÃO! 5 MINUTOS CA**LHO! BORA, AINDA DÁ! VESTE-TE, COME E ANDA! 4 minutos… 2… 1… e o João finalmente sai e seguimos para o próximo segmento.

Tolosa – Jazkue gaina / 10 km (total de 87) / 660 d+ 220 d-

E lá partimos, nós e os vassouras… coisa que me estava a incomodar. Este segmento começava com cerca de 1 km em alcatrão, em plano, pela vila de Tolosa, ideal para ganhar algum tempo. Era hora de correr pelo prejuízo…, mas o João só andava… não conseguia correr… e assim não ia dar… assim era impossível fazer os 19 km em menos de 4 horas… assim íamos ficar barrados… não podia ser…
Vou dando aos 100 metros de avanço, paro, e puxo por ele. Grito “BORA JOÃO! ANDA CA**LHO! ASSIM NÃO VAI DAR, TEMOS DE CORRER F***SSE”, mas sem nunca deixar que ele chegue a mim para não se sentir confortável… tinha de ser… cada vez mais estava decidido a não continuar naquela caminhada por mais tempo, porque só me ia levar à desistência… Ainda dentro da vila passamos por um atleta no chão. Tinha desistido e estava à espera de que o fossem buscar…
Cerca de 2 km depois do abastecimento começamos a chegar ao fim da vila, e ao início da subida que nos ia levar até ao próximo abastecimento. O João fica cada vez mais para trás… não vai dar… não vai, simplesmente não vai… respiro fundo… e preparo-me para tomar a decisão obvia… vou seguir… não há dúvida… só há duas hipóteses: ou espero e vamos ser barrados os dois, ou arranco, ele é barrado de qualquer maneira, e eu dou tudo o que tenho e pode ser que me safe. Fez-me lembrar aquela cena inicial do filme Limite Vertical… corto a corda, “mato” o João, mas tento safar-me? Ou não faço nada e sigo na direção do inevitável que era “morrermos” os dois?

Sigo e deixo-o sem sequer lhe dizer nada… já não o tinha em linha de vista e tinha de perder preciosos minutos para o avisar… ou será que foi apenas uma desculpa por não ter a coragem para lhe dizer cara a cara? Vou a pensar nisto uns minutos até que decido ligar-lhe e dizer-lhe que tinha seguido mais rápido e ia continuar…

Já estava, agora era comigo. De toda aquela malta que em novembro do ano passado estava super motivada para a prova, restava eu. Uns ficaram em lista de espera, outros tiveram outros planos, outros foi por saúde… restámos apenas três para a viagem. Dos três o Joaquim já tinha desistido logo nas primeiras horas… agora o João (não tinha desistido mas parecia-me iminente)… restava eu… eu e a força e determinação que sentia para terminar a prova! Tantas vezes tinha sonhado com o cruzar da linha de chegada… como ia celebrar, o que ia sentir… agora era comigo! E para isso tinha um objetivo imediato: 19 KM – 1000 d+ – 3h50! Era o que tinha de superar para não ficar barrado no próximo tempo de corte. Sigo a todo o gás subida acima, e corro como ainda não tinha corrido nesta prova. Apesar de já ter 80 km e 20 horas nas pernas, ainda me sentia fresco. Sabia dos riscos que corria ao acelerar ali, mas tinha de ser. Mais valia pagar a fatura mais tarde do que ficar barrado já na próxima barreira. Continuo a trepar ladeira acima, e passo por alguns atletas que ficam com ar surpreendido por ver alguém a vir de trás a correr naquela zona.

O abastecimento tarda em aparecer, pelo relógio já devia ter sido há 1 km, mas nem sinal. Sigo a todo o gás até que lá encontro uma tenda com um voluntário no meio do percurso, mas no meio do nada. Quase nem paro. Olho para o relógio e tinha demorado duas horas para fazer os 10 km. Agora era a descer até ao próximo, e estava encaminhado para conseguir novamente uma almofada para o tempo de corte.

Jazkue gaina – Amezketa / 9 km (total de 96) / 270 d+ 700 d-

Este foi um segmento com pouca história onde o foco foi descer rápido para chegar o mais rápido possível ao próximo abastecimento e tirar a “corda do pescoço”. Faço a descida a bom ritmo, de início com outro atleta que também tinha perdido a companhia, mas rapidamente o deixo para trás. Chego ao fim da descida e encontro o Joaquim numa zona em que o trilho cruzava com a estrada. Gostei de o ver novamente, e contei-lhe que tinha deixado o João para trás. Ele diz que tomei a decisão certa e isso deixa-me mais tranquilo. Rapidamente me despeço dele e sigo caminho. Tinha ideia de que o abastecimento seria já ali, mas ainda faltam uns 3 km que me pareceram uns 20! Ainda faltava um pouco de subida e depois um pequeno troço em alcatrão, já na vila, até ao abastecimento. Chego 35 minutos antes do tempo de corte. Tinha demorado cerca de 1h15m a fazer estes 9 km. Sinto uma grande alegria e alívio por ter saído da situação onde estava e ter agora os tais 35 minutos de margem. O que aí vinha era assustador e era importante enfrentar a montanha sem a corda do cronometro na garganta. Neste abastecimento o ambiente era depressivo. Silencio, vários atletas estão deitados a dormir num estrado improvisado. Eram perto de 6 da tarde e já os próprios voluntários deviam estar cansados. Como, bebo, e pouco mais de 10 minutos depois sigo caminho. Era hora de subir o mítico Txindoki!

Amezketa – Txindokiko lepoa – Uarrain / 5+7 km (total de 108) / 1750 d+ 400 d-

O Txindoki, é uma montanha mítica na região, e a sua forma piramidal é símbolo reconhecido na zona. Tem 1346 metros de altitude, e no seu sopé tem esta vila de Amezketa.

Ouvi várias vezes durante a prova que é aqui que ela realmente começa. Não gosto da expressão, porque acho que temos de olhar para o desafio como um todo e não apenas para a parte mais difícil. Sinto-me bem e com força, e saio do abastecimento com confiança. No entanto olho para a montanha com respeito, e sei que vai anoitecer quando estiver lá em cima. Decido fazer a subida com outros dois atletas – dois espanhóis, um deles basco, que já tinham terminado a prova mais do que uma vez.
A subida é dura, mas não é íngreme. É a extensão que a torna dura. No início era um estradão de terra batida, para acesso a algumas quintas, mas rapidamente dá lugar a um single track, um pouco mais técnico. Pelo caminho há duas fontes e aproveitamos para beber água, encher as flasks, e molhar o boné, já que o calor ainda se fazia sentir. À medida que vamos progredindo na subida deixamos o single track que ia a ladear a montanha e entramos numa zona de pastagem, com erva rasteira, onde íamos fazer a passagem pelo colo, para o outro lado da montanha. O percurso da prova não ia até ao topo da montanha, como chegou a acontecer nas primeiras edições, porque se tinha revelado extremamente perigoso, principalmente durante a noite e com chuva. Aqui um dos espanhóis já tinha ficado um pouco para trás e sigo só com o basco, com quem estou uns largos minutos à conversa enquanto vamos progredindo. Vejo o ponto de controlo de Txindokiko Lepoa, que não era um abastecimento, mas um simples controlo de tempo. Estavam cerca de 20 pessoas no topo, mas, como era um constante em toda a prova, a sua capacidade de animar e aplaudir valia por mil. Saco do telemóvel e registo o momento em vídeo. Olho para o relógio e são 20:42. Ganhei mais tempo para o corte! Ganho uma energia extra. Agora era já mais de uma hora de margem! Partilho esta pequena conquista pelo WhatsApp com os amigos da Matilha e a família e as mensagens que leio dão-me ainda mais alento para continuar!

É nesta altura que vejo também a mensagem do João… tinha desistido aos 97 km… A alegria mistura-se com a tristeza, que apesar de inevitável, não deixa de provocar um sentimento negativo. Nunca tinha desistido de uma prova… qual seria o sentimento? Penso nisso sempre que em provas onde vou algum amigo desiste. Parece estranho no final demonstrar a minha alegria e realização sabendo que ali ao lado pode estar um sentimento de enorme frustração. Mas aprendi a viver com isso, e de uma coisa tenho a certeza: um dia serei eu naquele lugar. Um dia serei eu o frustrado. Ou será que o sentimento é outro? Será resignação? Não sei…

A partir daqui o basco diz que tem de abrandar o ritmo e sigo sozinho. Entramos num planalto que dificilmente consigo descrever em palavras. Era uma zona de pastagem, com vacas e cavalos a pastar com os badalos ao pescoço que ecoavam no ar. A calma daquele quadro contamina-me e paro para sentir. Às vezes (ou quase sempre) a felicidade vem destes pequenos momentos inesperados, que à partida nada têm de especial… saco do telefone, registo a paisagem em fotografia e vídeo, e sigo caminho. A partir daqui vou umas boas horas sozinho. Sigo neste mundo encantado e vou tirando mais fotografias. Sinto-me bem e continuo em trote. Passo por um pico onde estão algumas pessoas e dizem que o abastecimento é já ali. O sol já se pôs e anoitece rapidamente. Chego ao abastecimento, faço o ritual do costume e sigo caminho. Era hora de tirar o fontal da mochila e ligá-lo.

Segunda noite

Uarrain – Lizarrusti / 8 km (total de 116) / 45 d+ 800 d-

A partir daqui a prova muda radicalmente. A noite cai, o nevoeiro está cerrado, e não vejo mais do que 10 / 15 metros à minha frente. O trilho não existia (era uma descida numa zona de pasto com erva rasteira), e as marcações eram fitas refletoras aqui e ali, penduradas em arvores, em cima de pedras ou espetadas no chão. O que era bonito deixa de ser, porque já não se vê. Para ver o caminho tinha de fazer um movimento de farol com a cabeça para varrer a área e encontrar o próximo destino. Eram puros azimutes sem saber o que estava a pisar. Para aumentar a dificuldade a zona estava cheia de vacas e bois já a prepararem-se para dormir, alguns mesmo no meio do caminho. Este troço é completamente a descer, em 8 km tem 45 metros de desnível positivo, o que nem dá para notar. Na parte inicial, ainda com alguma confiança, faço um vídeo para partilhar o momento com a malta da Matilha, a mostrar que não via nada (este não mandei para a família para não os preocupar). Estava complicado, mas ainda dava para a galhofa. A progressão torna-se muito lenta porque é difícil encontrar as fitas refletoras. Algures a meio da descida, a fazer o movimento de varrer a zona com o frontal em busca de algo que reflita, encontro um pequeno ponto lá ao longe e sigo caminho. Aproximo-me do ponto, mas não me estava a parecer que fosse por ali… olho em volta e não via mais nenhum ponto… agora nem o anterior… avanço lentamente até ao ponto que agora já refletia bem, chego cada vez mais perto até que quando estou a uns 30 centímetros dou um salto para trás!!! Não era uma fita! Eram os olhos de uma vaca, pasmada a olhar para mim! Eram os seus olhos que brilhavam intensamente com o meu frontal a apontar para eles! Refeito do susto, recuo com cuidado e tento regressar ao trilho. Isto está a começar a ficar complicado… e se me perco? Penso eu… não perco nada… porque é que havia de perder?! É sempre a descer… há de aparecer outra fita refletora! Lá apareceu e lá segui. Depois desta descida continuo a descer, mas agora junto a um riacho. Começo por ouvir a água ao longe, mas sem a ver, até que lentamente o trilho fica mesmo junto à água. Como era de esperar a lama era muita. Se antes a dificuldade era o nevoeiro, agora era o trilho feito num lamaçal perigoso e com muita pedra escorregadia. Este troço é curto e rapidamente passamos por uma zona que no breu da noite desconfio ser uma barragem. Tento olhar com o frontal a apontar em volta, mas não vejo nada… passada essa zona voltamos a descer e a encostar ao ribeiro, que agora parecia mais ao fundo. O trilho era bom, sem obstáculos, e finalmente consigo correr um bom bocado. Começo a sentir o rio cada vez mais ao fundo à minha direita, e uma parede de rocha começa a levantar-se à minha esquerda. Apesar de o trilho estar a ficar cada vez mais estreito continua a dar para correr até que reparo que na parede de rocha à minha esquerda começa a haver correntes. Paro instantaneamente porque se as correntes ali estão é para alguma coisa. Agarro-me a elas e tento olhar para a direita para medir o desnível até ao riacho… não dá… não se vê nada com o nevoeiro, e deve ser bem fundo. Avanço agora com cuidado, e admito que também com algum medo. Pouco depois chego ao abastecimento de Lizarrusti. Eram 23:45.

Tinha feito os últimos 13 km em 3 horas. A progressão tinha sido definitivamente mais lenta, mas a verdade é que tinha ganho mais margem no tempo de corte. Tinha agora 1h50m e estava confiante que não era por isto que não ia acabar.

Quanto ao resto, o cansaço já era algum, mas sentia-me bem. Ainda não tinha grandes dores e a única coisa a chatear era mesmo os inconvenientes da noite de nevoeiro. A parir daqui, entro no desconhecido no que toca ao acumulado de quilómetros. A prova mais longa que tinha feito era de 105 km, Pensei nisso por um instante, mas nunca mais voltei a pensar… era só uma curiosidade.

Lizarrusti – Etzegarate / 14 km (total de 130) / 950 d+ 1200 d-

No abastecimento o ambiente era novamente quebrado. Apenas alguns atletas sentados a descansar em silencio, e meia dúzia de voluntários a conversar em voz baixa. Fico novamente os 15 minutos da praxe, mas desta vez não posso enviar as mensagens do costume porque não há rede de telemóvel. Antes de sair do abastecimento pergunto como é percurso agora, se continua com os penhascos (na verdade ainda hoje não sei se era mesmo um penhasco…), mas dizem-me que não, que é bosque.

São 14 km até à base de vida e olhando para o roadbook não parece ter a dificuldade que a altimetria diz, mas é enganador. Logo à saída do abastecimento entramos numa subida íngreme e o nevoeiro começa novamente a cerrar… vejo um atleta a vir em sentido contrário e pergunto o que se passa. Diz que vai desistir, que o nevoeiro lhe causa grandes problemas porque tem dificuldades de visão, e que não aguenta mais. Ofereço-lhe a minha companhia para seguirmos juntos, mas não aceita… é mesmo assim… uns seguem outros não… faz parte.

Entretanto, em algumas zonas consigo rede de telemóvel e mando as mensagens aos amigos e família. Vejo que estão preocupados porque não digo nada há muito tempo. O Barbosa já me tinha tentado ligar e enviar SMS. Ligo de volta porque afinal também era bom ouvir uma voz familiar. Falamos alguns minutos e diz-me que vai ficar acordado ainda umas horas e que posso ligar à hora que quiser se houver algum problema. O Roberto diz o mesmo e fico comovido com a camaradagem destes amigos – A MATILHA É ISTO!!. Não havia nada melhor naquele momento do que tê-los ali no bolso comigo. Era como se fossemos todos juntos, como numa quinta-feira em Monsanto. Entretanto vejo ao longe a luz vermelha de um atleta que ia uns 200 metros à minha frente e decido acelerar para o apanhar. Se o nevoeiro estava assim tão complicado, era melhor ter companhia. Em poucos minutos apanho-o e seguimos juntos. O nevoeiro era realmente cerrado, tal como há umas horas atras quando ia batendo de frente contra uma vaca. A diferença era que aqui não havia vacas, e havia trilho, o que fazia a progressão menos lenta, ou assim parecia. Estes 14 km são bastante duros e revelam-se bastante lentos. Demoramos quase 4 horas a chegar ao abastecimento. Temos direito a tudo: um sobe e desce constante, quase sempre com nevoeiro, chuva, lama, muita lama, descidas a escorregar de rabo no chão, mais lama até meio da perna, daquela de quase fazer descalçar a sapatilha, e uma descida vertiginosa num completo lamaçal até à estrada que nos leva aos metros finais do troço, até ao abastecimento. Durante estas quase 4 horas vou conversando com o espanhol – o Javi – que foi uma excelente companhia para passar este setor bem duro.

Segunda base de vida – Etzegarate – 130 km

Chego à segunda base de vida. A margem de tempo desceu 10 minutos, mas está controlada: 1h40m.

Apesar de serem praticamente 4 da manhã, esta base de vida está bem mais animada. Mais atletas, mais pessoas a dar assistência aos atletas, mas, curiosamente, menos voluntários.

Apesar do cansaço que já sentia – esta era a segunda noite em claro, e a trigésima segunda hora de prova – tento não me esquecer de nada do que tenho para fazer neste abastecimento. Vou recolher o saco que tinha enviado e meto logo o iPhone e o relógio a carregar. Preparo e bebo o rebuild da Tailwind e vou buscar uma sopa quente, um prato de massa com carne, melão e melancia, e uma chávena grande de café bem quente. Já com o estomago saciado, passo ao equipamento. Troco de t-shirt e de meias e decido manter os calções. Já sentia um ligeiro “morder” dos calções na zona do rabo, mas prefiro meter bastante creme gordo e continuar com os mesmos. Pondero se troco de sapatilhas ou não. Tinha algumas bolhas nos dedos pequenos do pé direito, mas estavam controladas. Não era por aí que ia trocar. A única razão para trocar era o facto de as que tinha estarem completamente encharcadas e enlameadas, e com meias novas era “uma pena” voltar a calçar aquelas sapatilhas… Qual era aqui o grande problema? As sapatilhas que tinha mandado no saco para esta base de vida eram as Altra Timp 4, muito mais duras, com muito menos amortecimento, e tinha feito ainda poucos treinos com elas… era um grande risco… valeria a pena? Eram só mais 40 quilómetros… troco não troco…. Decido trocar. Dou alguns passos no abastecimento para ver como o pé estava a assentar. Tudo ok. Descanso mais um pouco, como mais qualquer coisa, olho para o Javi – com quem curiosamente não troquei uma única palavra durante o tempo em que estivemos na base de vida – e arrancamos. Tinha estado ali 50 minutos, e estava pronto para seguir.

Etzegarate – San Adrian / 9 km (total de 139) / 700 d+ 400 d-

Este era um segmento curto, que nos ia levar até à base do mítico Aizkorri, um grande maciço calcário com cerca de 1500 metros de altitude, o mais alto da região. É palco de uma das mais famosas provas de trail – a mítica Zegama-Aizkorri – com a fantástica subida ao pico de Aizkorri, com centenas de pessoas a aplaudir, e o túnel natural de Lizarrate.

Saímos do abastecimento pelas 4:30 da manhã, ainda com a noite bem escura. Avançamos muito lentamente. O cansaço acumulado começa a fazer-se sentir e o sono ataca em força. Primeiro é o Javi, que sem eu me aperceber começa a ficar para trás… espero por ele, que me diz que tem muito sono… continuamos lentamente. Passado uns minutos sou eu que dou por mim a caminhar de forma automática, um pé à frente do outro, mas sem estar a pensar no que estava a fazer e praticamente a fechar os olhos… Podia ter dormido uns minutos na base de vida – dizem que as chamadas “power naps”, de 10 a 20 minutos no máximo, são ótimas para evitar o sono e curtas o suficiente para não nos deixar zonzo – mas para além de não ter muito tempo para isso, também nunca o tinha feito em corrida e não sabia como iria reagir. Numa situação normal, quando faço uma sesta pequena no sofá, por exemplo, acordo sempre com uma má sensação no corpo.

Vamos avançando lentamente, tentamos conversar um com o outro e sabemos que rapidamente a claridade vai chegar e em poucas horas o sol estaria a nascer no horizonte. Rapidamente entramos no Parque Natural de Aizkorri, e é impressionante a quantidade de pessoas que às 6 da manhã já estão a chegar ao estacionamento para as suas caminhadas. Apesar de o sol ainda não ter nascido o dia já estava claro e arrumo o frontal.

A paisagem muda radicalmente, o bosque dá lugar à erva rasteira, com arvores aqui e ali, e começamos a ver o imponente maciço de calcário a surgir por cima das arvores. Ali estava! o ponto mais alto da prova, a mítica subida da prova de Zegama, o túnel por onde o Kilian Jornet saltita de pedra em pedra à velocidade de quem vai a correr no alcatrão… era ali e agora também eu lá ia passar! Que privilégio! Em poucos minutos chegamos ao abastecimento onde ficamos apenas 10 minutos. Aqui há novo controlo de tempo e a margem para o tempo de corte volta a baixar, agora para 1 hora. O café que bebo e o facto de já ter nascido o dia renova as energias e sinto-me muito melhor. No entanto, uma coisa que começo a notar é que a decisão de trocar de sapatilhas não foi acertada: o amortecimento era muito inferior e começo a ter dores na sola do pé, e o facto de a sapatilha ter uma forma muito mais larga fazia com que o pé (e as bolhas nos dedos pequenos), que até ali ia aconchegado à sapatilha, agora tivessem muito mais espaço para se mover lá dentro, o que me estava a provocar alguma dor. Consigo correr no plano, mas na descida, com o pé sempre a escorregar para a frente, começa a ser doloroso. Sei que a partir de agora só pode piorar…. Muscularmente estou bem, e ainda não tenho nenhuma mazela.

Segundo dia e final da prova

San Adrian – Oazurtza / 9 km (total de 148) / 950 d+ 1200 d-

Este é um troço duríssimo. 3h40m para fazer 9 km! Quase 150 km nas pernas.
A subida para o pico e Aizkorri começa com a passagem pelo famoso túnel natural de Lizarrate e rapidamente começamos a subir a pique, a saltitar entre blocos de calcário.

A progressão é lenta e nesta zona as árvores não deixam ver a paisagem. Feita esta primeira parte da subida, chegamos a uma zona de clareira, onde conseguimos ver a impressionante vista lá de cima, e a famosa subida final para Aizkorri. Em poucos minutos estamos nessa subida, e com a ermita à vista! Infelizmente fazemos a subida apenas com uma pessoa a ver, e não com a multidão que se vê na outra prova. Tem até as suas vantagens… assim podemos usufruir do momento com a calma e serenidade que se impunha. A vista lá de cima era impressionante, mas era tempo de descer. Descemos para o lado esquerdo para uma imensa zona de pasto com várias casas de agricultores e muitos animais a pastar. Faço a descida já com os pés em brasa e volto a arrepender-me pela centésima vez de ter trocado de sapatilhas. Ao longo da descida vamo-nos cruzando com muitas pessoas que estavam em sentido contrário, a subir: outros atletas a treinar, famílias com mochila às costas, novos, velhos, homens e mulheres… sem dúvida impressionante a quantidade de pessoas que, como nós, está ali para desfrutar da montanha. Enquanto desço, e depois de consultar o roadbook, fico com a impressão de que no final daquela descida estaria o abastecimento. Essa ideia é até confirmada por alguém que vai a subir e grita: “é já ali!”. Mas não era… era apenas um habitante que à porta de sua casa montou uma mesa para dar água e bolos aos atletas que passassem…. Volto a olhar para o roadbook e vejo que afinal ainda falta subir o equivalente ao que tínhamos acabado de descer, e fazer outra enorme descida, essa sim até ao abastecimento. Quando começamos a subir apanhamos dois outros atletas que iam mais lentos e o Javi fica com eles. Eu, como estou a sentir-me bem e com força, e quero chegar com tempo à última barreira horária da prova (excluindo a da meta), acelero nesta subida, e dou um avanço considerável ao Javi até o perder de vista. Sei que a seguir vem uma descida bastante inclinada, onde vou com certeza ter dificuldades por causa das dores que as sapatilhas me estavam a causar, e ele rapidamente me apanharia. A descida apesar não ser técnica, era bastante longa e inclinada. Tento ignorar as dores que sinto cada vez que aterro com os pés no chão e sigo até ao abastecimento. Chego pelas 11 da manhã, com uma hora de margem para o tempo de corte. Nem 5 minutos depois chega o Javi.

A chegada a este abastecimento teve um grande impacto psicológico para mim. Era a última barreira horária antes da meta, e agora tinha cerca de 7 horas para fazer os 20 km finais. Só uma hecatombe me ia impedir de terminar a prova. 7 horas dava para fazer os 20 km a caminhar lentamente, até porque eram maioritariamente em plano e descida. Deixo-me contagiar por este sentimento de alegria e partilho isso com a família e os amigos! Já estava, tinha conseguido. Recebo uma chamada do Roberto e vibramos com a conquista. Ainda assim, para conter a euforia – principalmente a minha – aviso que ainda faltam 20 km para a meta.

Oazurtza – Mutiloa / 10 km (total de 158) / 200 d+ 700 d-

Saímos do abastecimento com energia renovada para esta reta final. Fisicamente estou já bastante cansado, mas com a moral em alta. Estava feito! Seguimos num trote lento para acelerar e chegar rapidamente ao final, mas os meus pés já estão nas últimas… nas subidas e no plano ainda se aguentava, mas na descida, por pouca inclinação que tivesse era como se estivesse a caminhar sobre laminas. Estava a ficar insuportável. Para juntar a isto estava a ficar bastante assado com a fricção dos calções no rabo, e já não tinha posição para correr. O discernimento também já não era muito, e apesar de ter creme gordo e vaselina na mochila não me lembro disso e uso apenas protetor solar – que tinha ali à mão, no cinto – para aplicar no rabo. Começo a achar que fiz a festa cedo de mais. Estes 20 km vão ser muito dolorosos e demorados. Seguimos lentamente, já em piloto automático, e somos brindados ainda com umas grandes pendentes a descer, para acabar de destruir os pés. Vamos somando quilómetros e o abastecimento nunca mais chega…. Recebo a chamada que me salvou da depressão: o João e o Joaquim estão no abastecimento à minha espera para um brinde com cerveja bem gelada! O calor do meio-dia faz-se sentir e por duas vezes somos brindados com um banho de mangueira por pessoas que estão a ver os últimos atletas a passar à sua porta. Sabe tão bem! Finalmente apanhamos um amigo do Javi (que curiosamente me conhecia porque tinha estado no Trans Peneda Gerês em abril e tínhamos falado durante a prova) que nos acompanha no quilometro final até ao abastecimento.

Ao chegar ao abastecimento lá estavam o Joaquim e o João! Abraço-os e trocamos algumas palavras. Sento-me e eles tratam de tudo. Enchem as flasks vão buscar comida e, ainda mais importante, a tal cerveja geladinha! Estes momentos renovam energias e fazem esquecer qualquer dor que se sinta. E eu já sentia muitas. Na verdade, muscularmente não me sentia mal, mas as dores nos pés e a assadura no rabo estavam a tornar estes quilómetros finais muito dolorosos. Demoro 2h20m a fazer estes 10 km.

Mutiloa – Beasain / 10 km (total de 168) / 325 d+ 350 d-

Repostas as energias, é hora de seguir caminho. Agora sim, o último segmento. Os últimos 10 quilómetros. Depois disso não havia mais nada. Depois disso era a glória. O cruzar da meta. O culminar de todas estas horas pela montanha, e de todos estes meses de treino. Na verdade, nesta altura não penso muito nisso. Penso apenas no básico: seguir caminho e terminar a prova. Sigo com o Javi e ambos sabemos que estes 10 km finais vão ser difíceis. Não pelo terreno nem pela distância, isso era fácil. Era mais pela cabeça. Os quilómetros finais deste tipo de provas longas são sempre os mais difíceis. O sentimento de “isto nunca mais acaba” assola o pensamento, e a ansiedade dos últimos quilómetros toma conta de nós. Cada minuto vai custar a passar. Cada metro vai ser difícil. O cansaço geral apodera-se de nós. Não resta nada. Todas as forças foram deixadas na montanha. Todas as emoções ficaram lá para trás. Sinto-me esgotado e exausto, e a querer sair dali o mais rápido possível. Felizmente nunca tenho estes sentimentos negativos durante as provas que faço, e esta não foi exceção. Tive os meus altos e baixos, é certo, mas nunca sinto o clássico “o que é que eu estou aqui a fazer? Para quê? Para quê este sofrimento?!”. Nas outras provas longas que faço (nas que têm uma distância superior à maratona – 42 km) consigo sempre, à posteriori, identificar onde a moral estava em alta e onde foi mais abaixo, mas felizmente o limiar inferior nunca é ultrapassado. Nesta aconteceu o mesmo.

Não há história neste último segmento. É seguir lento e percorrer cada metro até ao final. O caminho era bom, e faz-se com tranquilidade. Ainda assim, sei que vamos demorar perto de 3 horas. Ultrapassamos uma atleta que vai no limite e diz que quer desistir – que não aguenta mais… damos-lhe um incentivo e seguimos. Somos também ultrapassados por 2 atletas já na aproximação a Beasain, mas não importava. O que importava era que íamos chegar, e já ouvíamos ao longe o burburinho da meta, e o speaker a falar. O objetivo para esta prova era apenas um: terminar! Não tinha qualquer objetivo de tempo ou classificação, apenas chegar ao fim. Era a minha primeira prova de 100 milhas e o importante era concluir.
Tentamos correr, mas não conseguimos.

Quando entramos na vila o terreno é completamente plano e falta pouco mais de um quilómetro. Conversamos sobre como vamos cruzar a meta e celebrar. Por norma, por muito mal que vá, gosto de atravessar a meta a correr. Gosto também, e tenho o hábito, de tirar a mochila e compor a camisola da Matilha para a foto final. Era o que ia fazer aqui. Vamos também discutindo quando íamos começar a correr para a meta. Por muito cansados que estivéssemos, tínhamos de fazer aqueles últimos metros a correr! Passamos por uns atletas que já tinham terminado e perguntamos quanto falta – 400 metros! Olhamos um para o outro e começamos a correr. As dores tinham desaparecido, como se subitamente não tivéssemos peso e levitássemos até à meta. Que força é esta que anula todo o sofrimento e nos leva até ao fim como se estivéssemos agora a começar?! Entretanto passámos pelo João e pelo Joaquim que vêm a correr connosco. A alegria era imensa, a meta já estava à vista… mais uns metros para chegar à praça e depois eram os últimos 10 metros a subir para a meta. Em contraste com a partida, a vila agora ignorava os atletas e seguíamos tranquilos. Damos a curva e era ali! 10 metros a subir, a correr, e já estava. Atiro a mochila ao ar (e agarro-a antes de cair, la dentro está material frágil), abraço o Javi, abraço o João e o Joaquim, recebo o prémio de finalista e sento-me.

Foi tudo muito rápido, e o momento épico com que sonhei durante meses afinal talvez tenha sido o menos intenso da prova. Pareceu-me algo bizarro até. O momento com o qual sonhava era a chegada, mas foi na partida que chorei, e no decorrer da prova que senti todas as emoções. Era quase como o regresso a casa depois de umas férias memoráveis, o que significava o fim. Ou talvez não tenha havido euforia por já ter celebrado interiormente no abastecimento de Oazurtza…

Pós prova, regresso a Portugal.

São 4 e meia da tarde, o João acompanha-me até ao hotel e vou descansar. A adrenalina cai a pique e tenho dificuldade até em tomar um duche na cabine apertada do quarto do hotel. Com dificuldade lá me lavo e deito-me na cama. Tinha combinado com o João que no final da prova íamos beber umas cervejas para festejar, mas estou sem forças. Adormeço… Acordo passadas umas 4 horas e pondero ir ter com o João e o Joaquim para celebrar. Não consigo. Estou esgotado de corpo e de alma. A prova levou-me tudo.
Tenho fome. Desço do quarto até às bombas e compro alguma coisa para comer. Acho que mereço um golpe na dieta e compro dois pacotes de batatas fritas, uma Coca Cola de litro e duas sandwiches em pão de forma, clássicas das estações de serviço. Vou para cima, como e volto a dormir. Acordo no outro dia e é hora de arrumar tudo para voltar a Bilbau e apanhar o avião de regresso a Portugal.

É segunda-feira… o Joaquim leva-nos para Bilbau e almoçamos por lá. O sono foi retemperador e sinto-me fresco novamente. Passeamos um pouco pela cidade e vamos por fim para o aeroporto para apanhar o avião e regressar a Portugal.

Ao chegar ao aeroporto, em Lisboa, temos a última surpresa desta aventura: para além da Julieta e da esposa do João, também o Barbosa o Camelo o Roberto estão lá à nossa espera. Olho para o João e fico incrédulo! O quê?! Temos direito a esta receção dos nossos amigos como se de duas vedetas se tratassem?! Era mesmo isso, e a felicidade foi genuína. Abraçamo-nos… aquilo era o significado da MATILHA!!!

Foi assim culminar desta enorme jornada, com chave de ouro, antes de regressar a casa para a vida real. No dia seguinte já vou trabalhar e o choque com a realidade era duro. Estava esgotado, mas era preciso voltar ao trabalho e à família.

Podem ver esta prova no Strava

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